domingo, 30 de outubro de 2011

Blade Runner - O caçador de andróides

Esse filme de 1982 dirigido por Ridley Scott (diretor também de Alien - o oitavo passageiro, Gladiador e 1942 – A conquista do paraíso, dentre outros) representa um marco no cinema pela originalidade de sua abordagem, vindo a influenciar uma série de outros filmes. É o perfeito representante do gênero Cyberpunk, que envolve a célebre dupla: "High Tech, low life", ou seja, nos revela um ambiente marcado pelo avanço tecnológico em uma sociedade decadente de valores e cheia de problemas sociais, bem como um panorama de conflitos individuais onde a vida parece ter sentido em apenas alguns momentos de fuga.
Além do grande diretor, o elenco também merece destaque com: Harrison Ford (Deckard), Rutger Hauer (Roy), Sean Young (Rachael).
 Sean Young
A temática principal de Blade Runner envolve os antigos questionamentos do homem sobre o medo e a morte, o que o leva a buscar seu criador. No entanto, essa antiga saga humana é desempenhada por Replicantes (andróides criados por humanos para servirem de escravos), que por possuirem a capacidade de reflexão se questionam e sofrem por isso. 

O filme inicia com a fuga de Replicantes de um planeta colonizado, para a Terra. O que buscam? Encontrar o criador deles, a mente genial que os deu vida. Os replicantes foram projetados para viverem por apenas 4 anos; o medo da morte iminente e o fim da existencia faz com que busquem por alguem que os dê a vida eterna. O paralelo com a humanidade é permanente no filme; não se trata de uma tragédia de andróides, mas a tragédia da própria humanidade, temerosa com o brilho da luz que se apaga ao longo do tempo. 

"Penso, logo existo" Descartes pela boca de Pris
A ambientação é peculiar: Uma Los Angeles em 2019, futurista, com veículos voadores, ao tempo que se põe em contraste com elementos comuns a 1982 (luzes neon, ventiladores de teto, monitores com tubo de imagem, móveis antigos, etc), dando um charme especial de futurismo retrô. Já a incessante chuva e a quase eterna noite trazem uma áurea intimista ao enredo, montando uma estrutura tão fria e individualista quanto as personagens. A falta de vínculos afetivos é forte presença no filme, mas é quebrada pela relação entre Deckard e Rachael que dão ao filme uma profundidade amorosa, silenciosa, tímida, mas verdadeira, como um ponto de luz que volta a acender em meio à escuridão. Outra característica que o embeleza visualmente é o contraste entre os ambientes sombrios e os feixes de luz em movimento que penetram pelas frestas, contribuindo ainda mais para o clima intimista. 
 Harrison Ford
São todos seres solitários como Sebastian cujos amigos são autômatos criados por ele próprio, ou o magnata Tyrell, cuja única companhia é uma coruja artificial, o que revela também a degradação ambiental e a decadência da vida no planeta. Deckard é um policial aposentado que volta a ativa, mas em busca de si próprio, encontra em Rachael um caminho; já Rachael, marcada por um passado falso, é a mais solitária de todos, já que nem lembranças reais possui como companhia.

"Pena que ela não viverá, mas afinal quem vive?" Gaff
A própria cidade de Los Angeles, degradada, suja, é retratada como um ambiente dos excluídos, daqueles que não podem escapar para outro planeta onde a vida seria mais saudável. A propaganda permanente no dirigível sobre um mundo utópico de felicidade, sobrevoa as cabeças desses desgraçados, inalcançável para eles, apenas servindo para atormentar ainda mais o sofrimento de cada habitante das ruas Los Angeles, como um fetiche sádico. A cidade é cosmopolita, marcadamente orientalizada, onde a língua e a cultura japonesa ganham destaque, reunindo povos de várias origens. Prédios insalubres, úmidos, com infiltrações da chuva, contrastam com as pontuais torres de luxo que segregam os ricos do contato com as mazelas da sociedade.
 Los Angeles
A trilha sonora não poderia ser melhor para compor esse conjunto e dar mais emoção às cenas. Sendo Vangelis o compositor não poderíamos esperar outra coisa; uma verdadeira obra prima, principalmente nas cenas introspectivas em que a belíssima Sean Young interpreta de maneira formidável.

Os diálogos são inteligentes e levam à reflexão, pelo caráter existencialista. A revolta da criatura com seu criador é um tema antigo, já debatido bem na obra Frankenstein de Mary Shelley; aqui temos a criatura revoltada contra seu criador por uma imperfeição que carrega consigo: o tempo escasso de vida, já que para Roy, líder dos replicantes, não basta ser intelectualmente e fisicamente superior aos humanos; isso mostra a eterna insatisfação do homem consigo mesmo, sempre olhando para seus defeitos e esquecendo suas virtudes. O grande mentor e gênio da engenharia genética resolve o enigma com uma única frase.

"A luz que brilha o dobro dura a metade do tempo." Tyrell
Outro confronto emocionante é a relação de Deckard e Roy, quem seria a caça e quem seria o caçador? Os dois se alternam e se confundem, como espelho um do outro, vidas que sofrem do mesmo medo da incerteza, sem identidade no crepúsculo de uma era. De onde sai um dos monólogos mais profundos e poéticos do cinema, na interpretação emocionante de Rutger Hauer. Parafraseando as palavras de Roy, escravo do tempo de vida, toda vida é diluída no tempo e se perde no passado, esquecida, escorrendo pelo chão como se nunca tivesse existido. Este é o ponto alto de sua humanidade, onde revela sentimentos reais; ao aceitar sua condição passivamente, entendendo que não pode lutar contra quem ele é, encontra por fim a liberdade que tanto almejara ao soltar o pombo que prendia nas mãos.

"All these moments will be lost in time, like tears in the rain" Roy
Cabe aqui uma crítica negativa à legenda do filme em português na cena de perseguição de Roy a Deckard: a bela rima proferida por Roy é desvirtuada em uma rima pueril, que não merece nem aqui escrever; seria mais inteligente traduzir a fala original literalmente mesmo sem rimar em nossa lingua.

A enigmática cena final do origami de unicórnio deixo para que cada um, ao assistir, reflita e encontre o significado. É um belo filme qua vale a pena se debruçar, seja pelo conteúdo filosófico, seja pelo visual contrastante, seja pela fotografia intimista, seja pela trilha sonora que encaixou perfeitamente, seja pela comovente atuação do elenco.

domingo, 23 de outubro de 2011

Ars gratia artis

Sempre pode-se perguntar qual será a utilidade da arte. Bom, a arte não é necessariamente construída para ser útil em algum aspecto do cotidiano; claro que há obras que se propõem a um engajamento político ou crítica social, como no teatro de Berthold Brecht ou como nas canções de Chico Buarque. No entanto, ninguém nesse mundo tem a prerrogativa de julgar algo como arte ou não pelo simples fato de não carregar consigo algum valor político, social, religioso ou de qualquer outra ordem, porque aquilo que toca o espírito não segue regras ou normas oriundas do interesse egoísta individual ou de grupos; apenas toca.

Nietzsche nos disse que o mundo sem a música seria um erro, talvez eu possa ampliar o conceito e dizer que o mundo sem a arte seria um crime, já que viveríamos nessa panela de pressão, em que somos cozinhados todo santo dia, sem uma única válvula de escape. Os homens seriam mais embrutecidos, nada criativos, como os operários do belo filme Metrópolis de Fritz Lang, que seguiam a lógica industrial do século XIX de viver para trabalhar e trabalhar para viver, alienados, reduzidos a míseros autômatos. Como triturar esses corações petrificados para gerar um solo propício à disseminação de flores e frutos, senão através sensibilidade que a arte carrega consigo? Aqui chego onde queria: a arte e o amor são um casal eterno que nunca se separam, onde um é fonte de inspiração ao outro, e assim se auto alimentam continuamente, como um moto perpetuo, pondo abaixo as leis físicas da termodinâmica; mas como já disse, a arte não é da matéria, portanto está além de qualquer norma ou lei; ela é dos sentidos, por isso pode ser tão enobrecedora quanto perigosa.

O melhor exemplo para isso é o romance do mestre Goethe, "Os sofrimentos do jovem Werther". É uma obra que marca o início do romantismo, e influenciou uma massa de jovens leitores a sofrerem junto a um protagonista cujo amor não foi correspondido, que de tanta paixão o levou à morte; comportamento que foi reproduzido como uma onda de suicídios entre jovens desiludidos com os amores que não poderiam ter. Em contrapartida, ainda no mesmo movimento romântico para mostrar uma outra face, há exemplos de influências construtivas, como a biografia romanceada de Myamoto Musashi, marco do romantismo japonês, escrita por Eiji Yoshikawa. No livro Musashi, Eiji mostra a construção e evolução de um ser humano, moldado a partir de um animal embrutecido até a condição de sábio; de um agressivo ronin (samurai andarilho sem mestre) até o mais famoso samurai que existiu no Japão; sabedoria e vida reta que também inspirou gerações a buscarem se aprimorar, tal fez Musashi. 

Se estamos falando de romantismo, claro que também estamos falando de excessos, essa é a semelhança dos dois livros; no primeiro, Goethe escreve baseado em sua própria experiência já que igual ao jovem Werther também passou por um desalento amoroso, porém diferentemente do protagonista não se matou, tanto que escreveu seu livro depois; já no segundo, existia a busca para a criação de um herói nacional, que desse uma identidade ao povo, disso foi inevitável a idealização, com fatos históricos suprimidos e outros criados, para dar à vida mais luz do que poderia eventualmente ter.

Mas assim é a arte, colore, dá brilho, torna a prosa em poesia, para dar aos sentidos algo mais agradável de tocar, ouvir, ver e sentir; se fosse apenas uma reprodução daquilo que vivemos, não haveira motivo para ela existir, ou melhor, não seria arte. A arte nos leva a sonhar, imaginar coisas fora do cotidiano, viver outra vida; ela nos dá a dose de ilusão que precisamos todo dia, para que, embriagados, possamos nos inspirar, ver o mundo com outros olhos, quebrando a alienação da pressa e das tarefas do dia a dia, e talvez, até, criar mais arte.